quarta-feira, 2 de julho de 2008

Homens de grossa ventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). João Luís Ribeiro Fragoso.

Segundo o texto, Caio Prado foi responsável pela possibilidade de se entender o sentido da colonização por meio da economia européia e pela impossibilidade de formação de um mercado interno com alguma relevância. A estrutura geral que marcaria, portanto, o mercado colonial foi o sistema plantation de grandes propriedades, monocultura e trabalho escravo. A existência desse sistema impossibilitaria assim a necessidade de um mercado interno, uma vez que esse sistema é caracterizado pelo auto-abastecimento.

Celso Furtado, que continua a tradição de Caio Prado, também se posicionava contra a idéia de existência de um mercado interno na colônia que não seria, portanto, autônoma. O autor adiciona ainda a redução de Portugal a mero entreposto da economia inglesa e desenvolve aspectos do mercado interno colonial, como sua divisão do trabalho não baseada na escravidão e sua regularidade frente às fases negativas do mercado. O mercado interno dependeria sim do sistema plantation, o qual abastecia.

Um autor que surge para integrar de forma mais sistemática o Antigo Sistema Colonial, o mercado internacional e o mercado interno, é Fernando Morais. Referências como “relações centro/periferia” servem de base, em sua historiografia, para a montagem do contexto histórico. O pacto colonial seria, para esse historiador, uma expressão do capitalismo comercial que, ao mesmo tempo, apresentava características típicas de uma metrópole não industrializada: cujos resultados do acúmulo de capital se deram por transferência das vantagens inglesas. A escravidão colonial permitiria a promoção dessa acumulação – já que os recursos coloniais não eram gastos com o trabalho livre – ao mesmo tempo em que dava fôlego ao comércio (o tráfico). O fim do pacto colonial ocorre com a vinda da família real para o Brasil, com a abertura dos portos para nações aliadas.

Outro historiador de destaque foi Ciro Cardoso, que, tendo como ênfase estruturas coloniais que não sofriam impacto direito do mercado internacional e das metrópoles, critica os modelos criados por Caio Prado Junior. A dinâmica do período colonial seria mais complexa, pois encontra fatores de sinergia entre a dependência e a presença de formações com contradições internas. Além disso, ele critica o “sentido da colonização” porque segundo essa teoria, a colônia não teria meios de reprodução próprios e estaria totalmente vinculada a fatores externas. Desconsidera, portanto, que a produção local de mercadorias cria novas objetividades com tendências à reprodução.

José Jobson Arruda e João Manuel Cardoso são outras referências que vem reforçar a antiga vertente: acham que colônia é desprovida de lógica própria, sendo a condição necessária para o desenvolvimento do capitalismo atual. Mas, por outro lado, pesquisas feitas por Roberto Martins mostram outra faceta da economia colonial, dotada de lógicas próprias de produção e reprodução. Fragoso insere-se nesse segundo grupo e estuda o mercado interno colonial.

Segundo o autor do texto em questão, a ênfase no aspecto macroeconômico do período colonial poderia muitas vezes atrapalhar a compreensão de outros processos presentes na época. Além disso, repensa a questão da acumulação primitiva e da transição para o capitalismo, retomando a perspectiva da posição de Portugal com relação a esses aspectos. Portanto, a metrópole lusitana, segundo Fragoso, utiliza a expansão marítima para sustentar uma economia incapaz por si só de sustentar sua reprodução.

Por fim, vê-se que novos estudos estão surgindo para a análise das relações entre metrópole e colônia, no sentido de atualização de suas categorias. Desse ponto de vista, os fundos retirados das colônias não serviriam para acumulação primitiva de capital, mas sim para manter as estruturas já existentes. Assim, a história passa a ser vista não retrospectivamente – fatos passados legitimando ocorrências posteriores – mas sim em consideração à sua lógica interna.

Escravidão e Abolição no Brasil: Novas Perspectivas. Ciro Flamarion Cardoso.

Capítulo 2: A abolição como problema histórico e historiográfico.

p. 74

Este capítulo tem a intenção de analisar alguns dos caminhos trilhados pela pesquisa histórica sobre a abolição brasileira desde 1960, aproximadamente.

...a explicação das causas ou determinações se apresenta com freqüência, em história, como uma referência, muito imprecisa quanto à sua forma lógica, a séries de “condições favoráveis” sem hierarquização interna – ou seja, a uma lista ou justaposição de fatores, em lugar de formas explicativas mais rigorosas, como seriam: a indicação de condições necessárias, ou suficientes, ou que fossem ao mesmo tempo necessárias e suficientes; ou ainda, de uma condição suficiente que, em dada circunstância, se tornasse necessária.

Abolicionismo e abolição

p. 75

A apreciação do vínculo entre abolicionismo e abolição variou, nos textos produzidos durante o período examinado, da consideração do movimento abolicionista como um epifenômeno (ou pouco mais que isto), num processo de abolição que obedecia a uma lógica estrutural (...), até a afirmação peremptória de que, pelo contrário, o confronto violento de um escravo ainda forte com um movimento abolicionista vigoroso foi essencial para a destruição do primeiro.

Uma tendência central nos estudos que concederam um peso explicativo e uma atenção consideráveis ao abolicionismo como fator da abolição foi a de enfatizar o caráter urbano do movimento.

Emília V. da Costa (...) chama a atenção para a confluência, no sentido do fim do trabalho escravo, de um bloco de interesses agrários paulistas e de um abolicionismo urbano que se difundiu entre grupos profissionais que cresciam nas cidades em expansão.

p. 76

Richard Graham (...): os abolicionistas se dirigiram às necessidades de novos grupos urbanos que emergiam no Rio e em São Paulo, sobretudo após a Guerra do Paraguai. Estes grupos urbanos (oficiais militares, engenheiros, industriais) adotaram uma visão moderna e progressista do mundo, cuja vitória no Brasil era dificultada pela escravidão.

Mais recentemente, Suely R. de Queiróz, embora aceitando a essência urbana do abolicionismo, pretende negar-lhe qualquer conteúdo de classe ou partidário, ou mesmo um sentido de oposição entre interesses urbanos e rurais.

P. 77

R. Bergstresser (...) atribui o florescimento do abolicionismo ao ressentimento urbano contra um governo imperial dominado pelos interesses agrários.

p. 78

Jaime Reis (...) mostra que a forma tradicional de avaliar o impacto do abolicionismo... qualitativa por excelência, não basta para solucionar a questão. (...) Para resolvê-la, ele propõe um enfoque quantitativo, que consiste em considerar o abolicionismo como uma “variável econômica exógena” e em medir o impacto desta sobre as atitudes das pessoas diante da escravidão, tomando como indicador o comportamento do mercado de escravos.

p. 79

Luta de classes e abolição

Eugene Genovese apresenta a originalidade de ter abordado sucessivamente esta questão privilegiando, primeiro, a classe dominante escravista e, em outra obra, a ação dos escravos.

p. 81

Entre os pesquisadores brasileiros, uma das posições polares a respeito da relação entre lutas de classes e abolição é a que foi assim resumida por Octavio Ianni... “Em geral, a abolição da escravatura foi um negócio de brancos”.

A outra posição polar consiste em afirmar a rebeldia negra como fator explicativo essencial da abolição, independentemente do abolicionismo “branco”. (Clóvis Moura).

p. 82

Estudando a rebeldia negra e o abolicionismo em Campos, lana Lage da Gama Lima se interessa centralmente pela análise do papel da rebeldia negra na crise final do escravismo, vendo-a em suas potencialidades mas também em suas limitações. Isto a põe contra duas afirmações opostas: a do escravo como vítima inerme e a do escravo como herói.

p. 83

Na crise final do escravismo, rupturas ocorridas no interior das classes dominantes permitiram a emergência da rebeldia das classes economicamente exploradas, incluindo os escravos. Mas o aprofundamento desta rebeldia, quando se torna um ameaçador interesses essenciais dos grupos dominantes, é interrompido, desfazendo-se então alianças eventuais e reaparecendo antigas oposições.

pp. 84-86

Celia Maria M. de Azevedo: Contra a “Escola de São Paulo” (Florestan Fernandes e discípulos). Passando a explicitar sua própria opção teórica, a autora, ... baseia-se em Cronelius Castoriadis para propor uma valorização das lutas implícitas, das “pequenas lutas disseminadas pelo cotidiano, não organizadas num todo coerente e dotado de ideário próprio”, com freqüência reprimidas e derrotadas, por tal razão deixadas de lado pela produção historiográfica, mesmo quando existem fontes disponíveis para a sua análise.

p. 89

críticas metodológicas ... a todas as tentativas de ressaltar o laço causal entre rebeldia negra e abolição. Uma delas tem a ver com o paroquialismo que consiste em ignorar, no debate desta questão, estudos numerosos e muito ricos... já realizados acerca do mesmo tema no Sul dos Estados Unidos, no Caribe e na América Espanhola. A outra é que, estando a rebeldia negra presente desde o início da escravidão de africanos e sendo, assim, traço estrutural da própria sociedade escravista, a demonstração de que possa ter tido um peso específico considerável no processo da abolição teria por força de seguir um de dois caminhos:

1) provar uma incidência quantitativamente maior de movimentos em 1850-1888, ou alternativamente, diferenças radicais no caráter desses movimentos;

2) ou mostrar como, nas novas condições inauguradas com a abolição do tráfico africano em 1850, mesmo uma incidência similar à do passado teria um peso maior na fragilização e crise do sistema escravista e, portanto, em sua superação.

p. 90

Imigrantismo e abolição

A disponibilidade de imigrantes, em um contexto de crescente escassez de mão-de-obra para o café, é elemento importante no livro de Emília V. da Costa sobre São Paulo. O imigrantismo como explicação de primeiro plano da abolição é mais típico, entretanto, dos escritos da cientista política Paula Beiguelman.

p. 91

“a orientação imigrantista do setor de vanguarda” provocou “uma crise fundamental dentro do escravismo”; ao mesmo tempo que promoveu, também limitou o abolicionismo em suas possibilidades transformadoras.

Paula Beiguelman acha que a superação do trabalho escravo pelo imigrante significou a passagem ao trabalho livre, assalariado. A originalidade do sociólogo José de Souza Martins consistiu em apresentar outra interpretação...

p. 93

Imaginário e abolição

Duas obras publicadas em 1987 inauguram, nos estudos brasileiros sobre a escravidão e a abolição no século XIX, um tipo de análise que... preocupa-se de forma prioritária com a dimensão do imaginário, das representações.

Lilian Moritz Schwarcz, apoiando-se em boa parte na antropologia e empreendendo uma análise de jornais paulistas do século passado, ocupou-se centralmente com o estudo de representações que conduzem à emergência da temática racial no final daquele século (...).

p. 96

Outra obra que interessa abordar aqui é a de Célia Maria Marinho de Azevedo (...). Ela escolhe como objeto principal o medo, em um estudo da transição do trabalho escravo ao livre em São Paulo no século XIX.

pp. 96-97

A hipótese central do livro decorre da seguinte pergunta: até que ponto a imagem de negros e mestiços como uma massa inerte, desagregada, inculta, sem grande importância histórica em fins do século XIX... não surgiu do âmago de todo um imaginário racista que procuraria com isso justificar a necessidade de trazer imigrantes europeus em substituição aos escravos?

p. 99

Estruturas econômico-sociais e abolição

Nos estudos de que agora falaremos, um dos riscos maiores é exatamente o oposto do que apontávamos... o de enfatizar de tal maneira as determinações estruturais, que a abolição pareça decorrer natural e automaticamente do peso crescente das contradições inerentes ao sistema escravista no século passado.

pp. 101-102

...é o esquema de Eric Williams que provê a explicação da abolição (mesmo se o processo abolicionista não é, em si, analisado), no bojo da “crise do colonialismo mercantilista”: “ao funcionar plenamente”, aquele sistema “vai criando ao mesmo tempo as condições de sua crise e superação”.

p. 102-103

Conclusões

1) O período abordado viu um desenvolvimento decisivo da profissionalização dos cientistas sociais e historiadores em nosso país (...).

Nota-se que se tornaram bem menos freqüentes do que no passado as obras de intenção meramente descritiva, avessa aos debates teóricos e às interpretações.

pp.104-105

Do ponto de vista da evolução futura da historiografia brasileira... toda a questão reside em saber:

1) até que ponto a mencionada ruptura é de fato algo tão radical, destinado mesmo a inaugurar uma nova era...

2) se, pelo contrário, será possível, na prática da pesquisa, chegar a considerar que a “hermenêutica e a analítica não representam contradições, mas apenas abordagens metodológicas que exploram áreas complementares da experiência histórica”.

2) Do ponto de vista metodológico, no período pós-1960 se confirmou, quanto à pesquisa da escravidão e da abolição, uma tendência muito positiva aos estudos regionais, já presente no início do período estudado, reforçada depois pela multiplicação dos cursos de pós-graduação. Em contraste, o estudo comparativo... teve, infelizmente, pouco desenvolvimento entre nós.

Um Contraponto Baiano. B. J. Barickman.

Nesse texto, Barickman resgata Ortiz com sua historiografia sobre a multiplicidade de uma economia predominantemente baseado no trabalho escravo e no plantation. Geralmente, segundo esses historiadores, deixa-se de lado a vida local dos senhores de engenho, consumidores, lavradores e escravos, e o aspecto que liga a todos aos mercados internos e externos.

O foco do estudo é o Recôncavo e outras regiões do Nordeste no período colonial e no século XIX. A maioria dos estudos aponta para a impossibilidade de desenvolvimento do mercado interno nessa região em decorrência da sua estrutura. Entretanto, o trabalho em questão aponta para a demanda intensa de farinha por parte dos senhores de engenho e lavradores de cana para alimentação dos cativos. Quando o mercado externo supria a oferta de cana dos grandes engenhos, então este passava a depender do mercado interno para a reprodução dos que trabalhavam nos canaviais. Dessa maneira, o mercado local era indispensável em uma região dominada pela agricultura de exportação.

Ao contrário da suposição de muitos estudos de que a escravidão, por não gerar renda para os consumidores (como ocorre com os trabalhadores livres), não encaixaria num cenário com mercado interno, não é o que se verifica na região baiana. Foi com o intuito de reproduzir o trabalho escravo em suas propriedades que grandes senhores, médio e pequenos proprietários, passaram a alimentar a produção local.

Importante notar que mesmo com decadência do comércio açucareiro, o de mandioca continuou a funcionar; e, mais do que estar exposto às flutuações internacionais, encontrava-se diretamente ligado aos períodos chuvosos e de seca – ao contrário do que afirma a escola paulista.

Outra idéia que deve ser reconstruída, segundo o autor, é a de que o domínio da posse das terras estava exclusivamente nas mãos do senhor de engenho. Segundo ele, as fronteiras agrícolas da época eram abertas e indefinidas e foi essa oferta de terra que permitiu o crescimento do comércio tanto de gêneros para exportação quanto para consumo local. Além disso, há a comprovação de que mesmo dentro da agricultura para exportação, havia alternativa para o plantation, um exemplo seria o cultivo de fumo. Este se diferenciaria radicalmente do cultivo de cana, tanto no uso da terra e de mão-de-obra quanto na utilização de determinadas técnicas agrícolas. Por outro lado, esse tipo de cultura também não era familiar e nem sempre era praticada por agricultores livres.

Conclui, portanto, que o desafio atual seria investigar e analisar as produções e relações do mercado interno e externo, juntamente com o trabalho escravo, em diversas regiões do Brasil. Chamando, portanto, um estudo que não seja reducionista como tradicionalmente se encontra na historiografia.

Sonhos Africanos, Vivências Ladinas. Escravos e forros em São Paulo (1850-1880). Maria Cristina Cortez Wissenbach.

Apresentação – p. 9

as expressões de uma vontade de potência e de rebeldias

o sentido social do crime e da criminalidade

as funções urbanas dos escravos

Introdução

p.13

o papel histórico do negro cativo e forro foi por muito tempo desconsiderado – cidade dos imigrantes e dos imigrantes pioneiros

a figura do negro escravo sintetizou a desclassificação social: desprezava-se sua presença incômoda, disciplinavam-se suas andanças pela rua e aglomerações

Este estudo é uma tentativa de reconstruir as vidas escravas e forros no município paulista da segunda metade do século e os autos criminais analisados situam-se entre os anos de 1850 e 1880.

p. 14

Enquanto os avanços da política emancipacionista produziam figuras intermediárias entre as condições escrava e livre, a rebeldia escrava orientava, para a cidade, levas de escravos fugidos. Para um mercado de trabalho híbrido, esses tipos residuais convertiam-se em mão de obra barata...

p. 15

A comunidade negra em São Paulo não chegou a se constituir de maneira vigorosa, nem a desenvolver formas avançadas de organização do mercado de trabalho, como ocorreu em Salvador. Ao contrário, associada em torno de laços informais, invadia desordenadamente os espaços públicos e irrompia em conjunto nas práticas religiosas das irmandades de homens pretos.

A história do negro em São Paulo não pode ser entendida sem a referência explícita ao preconceito social que vincou a organização da vida escrava e forra desta época e de suas fases posteriores.

p. 16

Considerando-se que a cidade não se manteve isolada das demais áreas da província, a questão negra e escrava devem ser entendidas numa perspectiva mais ampla. Centro de negócios e residência dos proprietários rurais refletiu e incorporou a problemática social em questão.

Os escravos, forros e homens livres negros juntamente com escravos fugidos que se abrigavam na cidade e em seus entornos não eram somente tidos como desordeiros e indisciplinados, mas também considerados potencialmente perigosos.

p. 19

os crimes, juntamente com as fugas, as rebeliões, a formação de quilombos e os suicídios, traduziam simultaneamente repúdio à escravidão e busca incessante de liberdade. Aos escravos restavam unicamente meios extremos

Nessa perspectiva, a resistência escrava visava acima de tudo a destruição do regime, ou, no limite da ação individual, a negação da própria condição.

p. 20

No geral, os crimes dos escravos foram vistos, tanto pelos contemporâneos, quanto pela historiografia tradicional, mais em seus efeitos na sociedade ou naquilo que dela espelhavam de que pelo significado que tiveram para os grupos infratores.

Nas últimas décadas, avanços na historiografia social possibilitaram a construção de novos recortes analíticos e significados para o estudo do crime e das indisciplinas dos grupos dominados da sociedade.

p. 21

... a abordagem do crime como revide inerente ao estágio infantil do movimento operário

o conceito de crime social foi posteriormente explorado por historiadores como Eric Hobsbawn, em seus estudos sobre as formas de rebeldia primitiva.

p. 22

Conduzidos por percepções mais abrangentes de tempo e do espaço e rompendo com a linearidade e a unicidade dos processos históricos, a intenção dos estudiosos ligados a essa tendência é a de reconstruir partículas da vida cotidiana, a intensidade dos processos de transformação histórica que perpassavam padrões de sobrevivência e de organização sociocultural e que interagiam de maneiras multivariadas no confronto entre dominação e resistência. Dois exemplos dessa historiografia são Peter Linebaugh e Edward Thompson.

p. 24

Os avanços da historiografia social foram incorporados pela produção brasileira mais recente, nos estudos sobre a escravidão. Novas tendências nas quais os crimes despontam como categoria de interpretação histórica que, revelando múltiplas tendências envoltas no regime do trabalho escravo, devem ser avaliadas internamente à dinâmica das relações sociais

Nessa historiografia, o término da escravidão passou a ser vista na confluência de diversos fatores: a ação dos abolicionistas, a luta partidária e a participação escrava.

p. 25

Criminalidade escrava

o estudo de homicídio de senhores e feitores, de roubo de produtos agrícolas e de outras transgressões praticadas pelos escravos revelou sentidos mais amplos. Traduziam estratégias dirigidas, sobretudo, à exigência de direitos dos escravos como tais

p. 26

...cultura escrava... tem merecido atenção destacada dos estudos recentes sobre as instituições nas Américas. Orientados por perspectivas teóricas distintas, diversos trabalhos procuram desvendar o sentido maior da vida dos escravos... pautam-se pela minuciosa e paciente tarefa de reconstituição das estruturas internas que a compunham, difíceis de serem remontadas, carentes de fontes e, no geral, filtradas e deturpadas pela visão dos dominados

p. 26

Para alguns estudiosos, a cultura escrava revestiu-se primordialmente de conteúdo oposicionista às determinações provenientes do mundo dos senhores e da própria escravidão.

p. 27

Nesse sentido, a principal contribuição de Genovese foi reintegrar o conceito de resistência à dinâmica das relações sociais, reincorporando-o não como repúdio ou negação, mas como conjunto de elementos provenientes da perspectiva escrava interagindo no mundo dos senhores e no funcionamento do regime.

p. 29

Estudando a escravidão na América Central, um dos expoentes das análises sobre a cultura escrava, Sidney Mintz pode apreender estruturas coincidentes e contínuas entre a vivência dos escravos e dos libertos e entre o passado escravista e a realidade socioeconômica da Jamaica contemporânea. Ele enfatiza a importância de serem observados não somente os atos de resistência à dominação, como especialmente as estratégias adaptativas que foram sendo elaboradas e ampliadas pelos escravos no contexto aparentemente rígido do trabalho escravo.

p. 30

...a base da autonomia escrava provinha, sem dúvida, de um patrocínio senhorial e estes por sua vez, não era simples resultado de complacência dos senhores e sim necessidades a eles impostas pelo funcionamento do plantation

p. 31

Em linhas gerais, os crimes cometidos pelos escravos, analisados nesse trabalho, incidiram em direções amplas: crimes imbricados diretamente na questão escravista e de sua violência, e crimes plenamente empregados em suas vivências específicas.

p. 32

os vínculos de subordinação não eliminavam as associações horizontais

Com isso, não se pretende afirmar que aos escravos não interessava a conquista de liberdade (...) mas simplesmente enfatizar que, nas dimensões do dia-a-dia, configuram-se, aos grupos escravos, outras direções. Sobreviver... era, por vezes, exigência maior a eles imposta pelo regime da escravidão.

Nenhum comentário: